terça-feira, 26 de abril de 2011

Queijo artesanal corre risco de desaparecer

Por Janaina Fidalgo, publicado na Folha de São Paulo, em 15/05/2008

O dia nem bem clareou quando a labuta começa. É preciso levar o rebanho ao estábulo, abastecer os cochos com silagem e ir chamando, pelo nome, vaca por vaca à sala de ordenha.

Aí, vêm os bezerros, que não só atendem pelo nome da mãe como ainda acham a teta certa. Mamam o primeiro jorro de leite do dia, o mesmo líquido rico que há mais de dois séculos é empregado, da maneira como é ordenhado –cru e morno–, na fabricação de um queijo artesanal que, de orgulho mineiro, corre o risco de morrer.

O queijo curado, robusto, feito para aproveitar o excesso de leite e resistir ao sacolejo, no lombo dos burros, pelas serras mineiras, existe ainda hoje e é produzido praticamente da mesma maneira, embora não seja tão fácil encontrá-lo maturado como costumava ser.

“Queijo bom é queijo curado”, ouve-se, a todo momento, de um e de outro. Todos ali, nas regiões produtoras, herdeiros ou não da tradição atribuída aos colonizadores portugueses, guardam alguma relação com o queijo e, ao menor assentimento, discorrem, sem pressa, sobre o tema. Fica mais clara a ligação mineira com o queijo de leite cru quando se descobre que há cerca de 27 mil famílias envolvidas na produção em todo o Estado, segundo a Emater-MG (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural).

“Por que temos a tradição da indústria do laticínio? Porque ela nasceu nessa origem, na produção do queijo artesanal”, diz o historiador José Newton Coelho Meneses, 51, professor da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais e autor do dossiê de instrução do processo de pesquisa feito para o Iphan.

Por queijo artesanal, entende-se aquele feito de leite cru, que expressa a cultura e a tradição de determinadas regiões, e que em nada lembra o difundido “queijo minas”, mirrado e pobre de gosto, produzido com leite pasteurizado, encontrado (e fabricado) de norte a sul.

E não só. Ao leite cru ordenhado hoje, acrescenta-se o “pingo” de ontem -um fermento natural, repleto de bactérias lácticas, colhido do soro drenado dos queijos moldados no dia anterior. É o “pingo” que dá identidade ao queijo, sabor, textura e cor que diferencia um do Serro de um da Canastra; um de Araxá de um do Alto Paranaíba/Cerrado -microrregiões tradicionais e demarcadas pela Emater-MG.

No Serro, o queijo é menor, consumido mais fresco, tem maior acidez, coloração mais clara e consistência macia. Na Canastra, é maior e amarelado, além de ser consumido mais maturado. O do Alto Paranaíba/Cerrado e o de Araxá são parecidos com o da Canastra, porém mais suaves.



A concorrência do leite
 
Num cenário com tantos produtores, em geral organizados em pequenas propriedades e com produção fundamentada no trabalho familiar, parece improvável que a tradição possa definhar. Mas muitos a têm trocado por outras mais lucrativas e menos trabalhosas, como a venda direta do leite.

Nascido em Vargem Bonita, Antônio Teixeira de Souza, 67, o Antônio da Estelita, como é conhecido em São Roque de Minas, onde vive e trabalha, deixou de fabricar queijo, apesar de ser um dos poucos registrados pelo IMA (Instituto Mineiro de Agropecuária). O órgão fiscaliza se os produtores atendem às exigências da lei estadual, como o uso de água clorada e filtrada, exames de brucelose e tuberculose e normas de higiene, entre outras. “Fui lutando, fiz empréstimo para construir a casinha [queijaria] e arrumá-la conforme a lei. Pelejei, mas não consegui um preço bom”, conta Souza.

O valor recebido pelo quilo do queijo artesanal oscila o ano todo. Na última semana, quando a Folha visitou São Roque de Minas e Medeiros, havia produtores cobrando de R$ 6,30 a R$ 12, de acordo com o tempo de cura e de fatores como a dificuldade de escoar o alimento. É aí que entram em cena os “queijeiros”, como são chamados os atravessadores que levam o queijo, nem sempre em boas condições, para outros Estados. A legislação federal permitir o comércio fora de Minas desde que os queijos passem por entrepostos cifados, onde devem ficar em maturação durante 60 dias.

“É um comércio que não remunera o produtor de forma adequada pelos investimentos que ele tem de fazer para construir a queijaria e se adequar à legislação. Esse é o principal entrave, que se traduz em falta de marketing, de profissionalismo, numa logística defeituosa e até na falta de informação do consumidor. Não tem como melhorar o preço de um produto sem comprovar porque ele vale mais’, avalia o veterinário Gilson Assis Sales, 27, da Aprocan (Associação dos Produtores de Queijo Canastra).

O produtor e presidente da associação, João Carlos Leite, 43, diz que essa é uma tradição secular que tende a acabar.

“Meu tataravô, meu bisavô, meu avô e meu pai faziam queijo artesanal. Dos meus cinco irmãos, só eu faço. Os outros abandonaram, porque é uma atividade que não tem mais rentabilidade. Fiquei porque dá prazer pensar que naquilo vai uma cultura familiar”, diz Leite. “Mas tem uns que dizem que não voltam mais para o queijo. Entre defender uma cultura e dar uma condição de vida melhor para a família, vão escolher a segunda opção.”

Um dos caminhos para valorizar o produto é a indicação geográfica das microrregiões, já que cada uma tem especificidades em razão do clima, da vegetação, da topografia e da flora microbiana do ambiente. O processo está tramitando e deve ser encaminhado, em breve, ao INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial).

“A indicação geográfica fará com que somente os produtores locados na região possam usar o nome dela em seus queijos, o que não acontece hoje. Quase todo o Estado “produz” queijo Canastra”, diz Sales.

Entre a fartura e o orgulho

Não raro a produção do queijo é associada à idéia de fartura, já que nada se perde. Até o soro é usado para a alimentação de porcos e animais domésticos.
 
“Tem um ditado que fala que, em fazenda que vende leite, até o cachorro é magro”, diz Luciano Carvalho Machado, 43, produtor de Medeiros que há três anos tem o registro do IMA e divide com a mulher, Helena, e os filhos as tarefas do fabrico.

Na propriedade, os queijos levam, em baixo relevo, a marca ‘LH’ -iniciais dos nomes do casal-, que denota certo orgulho. “Acaba sendo uma tradição, você não consegue ficar sem fazer queijo. Ninguém ensina para ninguém. Parece que todo mundo já nasce sabendo.”

Um comentário:

Sara disse...

Eu acho que é muito difícil encontrar queijo realmente bom, é por isso que você deve sempre estar procurando muito, mas quando se trata de comer algo com queijo derretido sempre pedir um delivery higienopolis e é muito rica.